DIREITO ADQUIRIDO. INTERPRETAÇÃO LITERAL DA NORMA. MARCO TEMPORAL. EC 103/2019. EFEITOS
Francisco Pereira de Sousa – OAB-DF, 62.346, pós graduado em Direito Previdenciário, Direito do Consumidor, Direito Penal e Processual Penal, e pós graduando em Direito de Família e Sucessões
Quem está prestes a se aposentar, um dia faz muita diferença. Talvez esse, “um dia” lhe retire direitos e o faça trabalhar por muitos anos.
Sem esgotar o tema, o sistema previdenciário brasileiro sempre foi alterado por Emendas à Constituição, isso porque previdência social é coisa séria.
Mas, a partir da Emenda Constitucional n. 103/2019, nosso foco desse estudo, as questões previdenciárias poderão ser alteradas, agora, por meio de Lei Complementar, cujo quórum de votação é mais complacente, com quórum de maioria absoluta nas duas Casas (41 Senadores e 247 deputados, na Câmara Federal). Já para às Emendas Constitucionais, são de 2/3 em ambas casas.
Dito isso, nosso foco nesse pequeno estudo refere-se ao chamado “marco temporal”, ou seja, a partir de quando uma norma, e nesse caso, a EC n. 103/2019, passou a garantir ou tirar direitos.
Como é sabido, uma Emenda Constitucional, depois dos tramites legais nas duas Casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), com votação em dois turnos, em ambas às Casas, a Emenda é promulgada e sua vigência, ou seja, seus efeitos, a depender da matéria, são imediatos, mas, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União Federal.
A EC n. 103 foi promulgada em 12/11/2019, e publicada no DOU, em 13/11/2019. Então, qual seria o marco temporal para se garantir o direito adquirido?
Já disse o constitucionalista espanhol Javier Perez Royo "A interpretação é a sombra que segue o corpo. Da mesma maneira que nenhum corpo pode livrar-se da sua sombra, o Direito tampouco pode livrar-se da interpretação" (ROYO apud BONAVIDES, 2010, p. 594).[1]
No Direito Brasileiro se admite uma séria de interpretações, que é um processo essencial, pois determina o alcance e a aplicação das normas jurídicas a casos concretos. Existem diferentes tipos de interpretação, e vamos destacar nesse artigo, a interpretação literal, que consiste em buscar o sentido gramatical e ao vocabulário empregado no texto da norma.
Essa interpretação busca manter o alcance social da norma, não aumentando nem diminuindo sua hipótese de incidência.
Nesse particular, tem-se a dúvida de que o marco temporal da EC n. 103, publicada em 13/11/2019, é o dia 12/11/2019, ou seja, dia da promulgação.
Da redação literal do Art. 3º da EC n. 103/2019, extrai-se que a norma quis referendar o DIREITO ADQUIRIDO, e assim, asseverou:
Art. 3º A concessão de aposentadoria ao servidor público federal vinculado a regime próprio de previdência social e ao segurado do Regime Geral de Previdência Social e de pensão por morte aos respectivos dependentes será assegurada, a qualquer tempo, desde que tenham sido cumpridos os requisitos para obtenção desses benefícios até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional, observados os critérios da legislação vigente na data em que foram atendidos os requisitos para a concessão da aposentadoria ou da pensão por morte. [grifei]
Da narrativa do referido artigo, depreende-se que os requisitos devem estar concluídos “até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional”, ou seja, até 13 de novembro de 2019, e não da data da promulgação, dia 12/11/2019. Vejamos:
Art. 36. Esta Emenda Constitucional entra em vigor:
I - no primeiro dia do quarto mês subsequente ao da data de publicação desta Emenda Constitucional, quanto ao disposto nos arts. 11, 28 e 32;
II - para os regimes próprios de previdência social dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quanto à alteração promovida pelo art. 1º desta Emenda Constitucional no art. 149 da Constituição Federal e às revogações previstas na alínea "a" do inciso I e nos incisos III e IV do art. 35, na data de publicação de lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo que as referende integralmente;
III - nos demais casos, na data de sua publicação. [destaquei]
Isso significa dizer que os efeitos, prejudiciais, inclusive, só serão aplicados a partir do dia 14/11/2023, uma vez que a própria Emenda Constitucional incluiu a data de publicação: “até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional,” como marco temporal.
Vejamos como o legislador constituinte reformador refere-se novamente acerca da aposentadoria de servidores policiais:
Art. 5º O policial civil do órgão a que se refere o inciso XIV do caput do art. 21 da Constituição Federal, o policial dos órgãos a que se referem o inciso IV do caput do art. 51, o inciso XIII do caput do art. 52 e os incisos I a III do caput do art. 144 da Constituição Federal e o ocupante de cargo de agente federal penitenciário ou socioeducativo que tenham ingressado na respectiva carreira até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional poderão aposentar-se, na forma da Lei Complementar nº 51, de 20 de dezembro de 1985, observada a idade mínima de 55 (cinquenta e cinco) anos para ambos os sexos ou o disposto no § 3º. [destaquei]
Enxerga-se, novamente, que o constituinte reformador, taxativamente, garantiu que efeitos previstos no aludido artigo, só passam a ter vigência após a data de publicação da EC n. 103, pois “até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional...”, é direito adquirido. A data de entrada em vigor, foi o dia 13/11/2019 e não o dia 12/11/2019.
O “marco temporal” refere-se a datas específicas que são cruciais na aplicação das regras previdenciárias, pois o Direito Previdenciário parte do princípio de que eventuais modificações nas normas ao longo do tempo não podem prejudicar o direito já conquistado pelo trabalhador.
São basicamente os pontos de referência, a partir dos quais as regras de aposentadoria, abono de permanência e outros benefícios previdenciários são calculados e aplicados, determinando como os servidores podem se aposentar, sob quais condições e quais benefícios estão disponíveis para eles. Tudo isso está intrinsecamente ligado aos marcos temporais, ou seja, as datas em que estas normas entram em vigor e se tornam aplicáveis aos servidores.
Por amor ao debate, vejamos o que já asseverava o Art. 3º da Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1.998, mas, publicada em 16 dezembro de 1.998:
Art. 3º - É assegurada a concessão de aposentadoria e pensão, a qualquer tempo, aos servidores públicos e aos segurados do regime geral de previdência social, bem como aos seus dependentes, que, até a data da publicação desta Emenda, tenham cumprido os requisitos para a obtenção destes benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente.[2]
Tão notório que o marco temporal da EC n. 103, é o dia 13 de novembro de 2019, que houve revogação de impostos da União Federal, nos seguintes termos:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
- 2º O imposto previsto no inciso III:
II - não incidirá, nos termos e limites fixados em lei, sobre rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, pagos pela previdência social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a pessoa com idade superior a sessenta e cinco anos, cuja renda total seja constituída, exclusivamente, de rendimentos do trabalho . (Revogado pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
Referida revogação só passou a ter efeitos a partir da publicação no DOU, da EC n. 103 e não na data anterior, 12/11/2019.
A Emenda Constitucional n. 41 de 19 de dezembro de 2003, só foi publicada no DOU, em 31/12/2003: “Este texto não substitui o publicado no D.O.U. 31.12.2003[3]”, e naquele momento legislativo, previa no art. 6º, a seguinte redação:
Art. 6º Ressalvado o direito de opção à aposentadoria pelas normas estabelecidas pelo art. 40 da Constituição Federal ou pelas regras estabelecidas pelo art. 2º desta Emenda, o servidor da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, que tenha ingressado no serviço público até a data de publicação desta Emenda poderá aposentar-se com proventos integrais, que corresponderão à totalidade da remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a aposentadoria, na forma da lei, quando, observadas as reduções de idade e tempo de contribuição contidas no § 5º do art. 40 da Constituição Federal, vier a preencher, cumulativamente, as seguintes condições: [destaquei]
Nesse particular o referido artigo garantia a paridade de vencimentos entre ativos e aposentados do serviço público, que pela dicção do aludido texto, “que tenha ingressado no serviço público até a data de publicação desta Emenda [...], e não da data de promulgação, que ocorreu em 19/12/2003, cerca de dez (dez) dias antes, o que seria, sem nenhuma dúvida, se aplicada como se tem interpretado o marco temporal da EC n. 103/2019, um contrassenso jurídico, dado aos inúmeros prejuízos que teriam os indivíduos atingidos.
Portanto, se preenchidos os requisitos, em especial, de aposentadoria, até 13 de novembro de 2019, há direito adquirido, pois o marco temporal da entrada em vigor das alterações da Reforma da Previdência, seria o dia seguinte a publicação, 14/11/2019.
Tal conclusão se reforça com a Nota Técnica SEI nº 48865/2021 do Ministério da Economia[4], sobre o assunto Tema 942, do Supremo Tribunal Federal, quão a aplicação das regras do RGPS para averbação de tempo de atividade especial, com conversão em tempo comum.
Após arrazoada fundamentação a Secretaria de Previdência do Ministério do Trabalho e Previdência, e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, apresentou os efeitos dos desdobramentos do julgamento do Tema nº 942, no Recurso Extraordinário – RE nº 1014286/SP, de repercussão geral, julgado no STF, sobre o reconhecimento e conversão de tempo de atividade especial que, em regra fixou o seguinte entendimento:
I – alcança apenas os servidores filiados ao Regime Próprio de Previdência Social -RPPS cujas atividades foram exercidas sob condições especiais que prejudicam a saúde ou a integridade física até a data de entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 103, que se deu em 13 de novembro de 2019, quanto ao direito à conversão desse tempo especial em tempo comum pela aplicação doas regras do regia Geral de Previdência Social – RGPS sobre a aposentadoria especial de que trata o art. 57 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991; [destaquei]
Conclui, ainda o referido Parecer (item 7. CONCLUSÃO), letra “d”, que foi vedada a conversão de tempo especial em tempo comum, na forma prevista na Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, em relação ao tempo cumprindo no GPSP após 13/11/2019.
Partindo desse entendimento firmado no referido Parecer do Ministério da Economia, é forçoso reconhecer que o período laborado em condições especiais deve ser reconhecido até o dia de entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 103, ou seja, até o dia 13/11/2019, e não o dia 12/11/2019.
“Tudo o que um sonho precisa para ser realizado é alguém que acredite que ele possa ser realizado.”
Assim, conclui-se que não há outro entendimento, por força da interpretação literal dos dispositivos constitucionais trazidos neste artigo, principalmente, aqueles referenciados na Emenda Constitucional nº 103, e a conclusão extraída, em Parecer, da Secretaria de Previdência do Ministério do Trabalho e Previdência, e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, sendo esta procuradoria, Órgão Central do Sistema de Pessoal Civil da Administração Federal, que conclui ser vedado a conversão de tempo especial em comum, em relação ao tempo cumprido no RGPS após 13/11/2019, senão em reconhecer que o tempo especial a ser analisado é aquele que vai até o dia 13/11/2019, e não até o dia 12/11/2019.
DA LEGALIDADE ESTRITA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O princípio da legalidade, conhecido por meio da expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege, que significa que “não há crime, nem pena, sem lei anterior que os defina”, é muito importante no estudo do Direito, sendo um norteador para leis e dispositivos. Esse princípio encontra-se em várias partes da Constituição Federal e também em códigos penais e outros documentos.
Através da lei é possível criar deveres, direitos e impedimentos, estando os indivíduos dependentes da lei.
Nesse princípio, aqueles que estão dentro dele devem respeitar e obedecer a lei. Pode-se ainda dizer que esse princípio representa uma garantia para todos os cidadãos, prevista pela Constituição, pois por meio dele, os indivíduos estarão protegidos pelos atos cometidos pelo Estado e por outros indivíduos. A partir dele, há uma limitação no poder estatal em interferir nas liberdades e garantias individuais do cidadão. Assim, de modo geral, é permitido a todos realizarem qualquer tipo de atividade, desde que esta não seja proibida ou esteja na lei.
Nesse sentido, temos a legalidade estrita que é aplicado especificamente às pessoas de direito público. O art. 37 da CF/88, dispõe “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, (...)[1].
Por este viés, ficam os entes da Administração Pública sujeitos especificamente ao que está previsto e disposto em lei, devendo agir, fazer ou não fazer exclusivamente de acordo com o que está legislado
O Professor Caio Tácito, explicita assim de forma resumida:
“Ao contrário da pessoa de direito privado, que, como regra, tem a liberdade de fazer aquilo que a lei não proíbe, o administrador público somente pode fazer aquilo que a lei autoriza expressa ou implicitamente.” Revista de Direito Administrativo, nº 206, 1996.
Nas palavras do jurista Hely Lopes Meirelles, na obra Direito Administrativo Brasileiro (Malheiros, 2016), temos:
‘Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “pode fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”.
Partindo desse, onde deve a Administração Pública se nortear pela legalidade estrita, ou seja, atuar conforme a lei, seguindo a interpretação literal da norma, art. 3º da EC n. 103/2019, e da Tese firmada no STF, a União Federal, aprovou, DESPACHO Nº 846/2021/SPREV/SEPRT-ME (doc.9), de Notas Técnica: SEI nº 792/2021/SRPPS/SPREV/SEPRT/ME, de 21/01/2021, da Subsecretaria dos Regimes Próprios de Previdência Social - SRPPS/SPREV (12908723,) e a Nota Técnica SEI nº6178/2021/SRGPS/SPREV/SEPRT/ME, de 10/02/2021, da Subsecretaria do Regime Geral de Previdência Social -SRPGS/SPREV (13590427), que trataram da possibilidade de aplicação das regras do Regime Geral de Previdência Social -RGPS para a averbação do tempo de serviço prestado até a publicação da Emenda Constitucional nº 103/2019, em atividades exercidas sob condições especiais, nocivas à saúde ou à integridade física de servidor público, com conversão do tempo especial em comum, conforme análise do sentido e alcance da seguinte tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal - STF no julgamento do Recurso Extraordinário - RE nº 1014286, representativo do Tema nº 942 da Repercussão Geral.
Documento este juntado aos autos, quando da impetração do respectivo MS, mas não levado em consideração pelo d. Magistrado a quo, para garantir a ordem requerida, assim como se juntou a Tese firmada no STF e outros documentos.
Nesse particular, sob o prisma da legalidade estrita, entende os referidos Órgãos Públicos Federais: Ministério da Economia e da Subsecretaria dos Regimes Próprios de Previdência Social - SRPPS/SPREV (doc.9), que tratam do RPPS, que:
“(...)
2. Estou de acordo com o entendimento sintetizado a seguir – fundamentado nas aludidas Notas Técnicas – e autorizo sua divulgação como orientação aos Regimes Próprios de Previdência Social - RPPS da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e ao Instituto Nacional do Seguro Social - INSS: [destaquei]
I - A tese fixada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF no Recurso Extraordinário nº 1014286 (Tema nº 942 da Repercussão Geral):
I.1 - alcança apenas os servidores filiados ao RPPS cujas atividades foram exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física até a data de entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 103, que se deu em 13 de novembro de 2019, quanto ao direito à conversão desse tempo especial em tempo comum pela aplicação das regras do RGPS sobre aposentadoria especial de que trata o art. 57 da Lei nº 8.213, de 24/07/1991;
(...)
III - A aplicação combinada do § 14 do art. 201 da Constituição Federal, acrescido pela EC nº 103/2019, e do art. 25 dessa Emenda, permite concluir que é válida a conversão – no âmbito do RGPS – de tempo especial em tempo comum, cumprido até 13/11/2019, na forma prevista na Lei nº 8.213/1991, inclusive para efeito de contagem recíproca, pois a vedação de contagem de tempo de contribuição fictício – que abrange a conversão de tempo especial em tempo comum, para efeito de concessão de benefício previdenciário e de contagem recíproca – apenas incide em relação ao tempo especial cumprido após a entrada em vigor da Reforma. [destaquei]
[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[1] https://www.jusbrasil.com.br/artigos/interpretacao-das-normas-de-direito-previdenciario/733130432
[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc20.htm ( Este texto não substitui o publiacado no DOU de 16.12.1998) (sic)
[3] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc41.htm
[4] https://www.tst.jus.br/informativos-lp/-/asset_publisher/0ZPq/document/id/27734943#:~:text=21%2009%3A17-,ME%20%2D%20Nota%20T%C3%A9cnica%20SEI%20n%C2%BA%2048865%2D2021%2DME%2C,com%20convers%C3%A3o%20em%20tempo%20comum.